Diários do isolamento, dia 6

Silvana Salles
3 min readMar 25, 2020

Depois de uma pausa de alguns dias, volto às anotações diárias durante o período de distanciamento social a que o coronavírus nos submete. Vamos manter a conversa rolando por aqui?

Partículas do vírus SARS-CoV-2 estão identificadas em amarelo sobre um fundo azul. São redondas e têm “tufos” na membrana.
Microscopia de partículas do SARS-CoV-2. Foto: NIAID

A quarentena começou oficialmente no estado de São Paulo nessa terça-feira, 24 de março. Mas no centro da capital a sensação de quarentena já estava no ar dias antes. Como no sábado de manhã, quando passei pela Santa Efigênia completamente fechada e a Praça da República vazia.

Um tanto estranho passar pelas ruas esvaziadas e desanimador pensar que a paisagem provavelmente permanecerá desta forma pelos próximos meses. Talvez até mais; os documentos científicos que estão embasando as decisões do governo britânico, por exemplo, chegam a citar a necessidade de manter medidas mais ou menos rígidas de distanciamento por quase um ano. Tudo para evitar que a covid-19 tome de assalto o sistema de saúde, inviabilizando não só o tratamento dos pacientes infectados com o SARS-CoV-2, como também qualquer outra pessoa que precise de atendimento médico de urgência.

É por essas e outras que causou estarrecimento geral o pronunciamento oficial do presidente Jair Bolsonaro nessa noite. Contrariando todo o conhecimento que a humanidade já produziu sobre a covid-19, ele foi à TV pedir às pessoas para ignorarem todas as recomendações de cientistas e profissionais de saúde, governadores, prefeito e autoridades sanitárias.

Bolsonaro tratou os governadores como inimigos, difundiu mentiras, atacou a imprensa e falou tal quantidade de bizarrices em tão pouco tempo que foi difícil acreditar que um cara desses seja presidente de qualquer coisa, ainda mais de um país de 200 milhões de habitantes. Causa terror saber que, durante todo esse teatro, ele estava sentado sobre um relatório da Abin com estimativas que dão conta de que mais de 5.500 brasileiros poderão morrer de covid-19 até 6 de abril, conforme reportagem do The Intercept Brasil.

Como um idiota que ri das próprias piadas sem nenhuma graça, Bolsonaro apareceu com um sorrisinho oblíquo na cara dizendo que, tivesse ele pegado covid-19, não teria passado de uma “gripezinha”, devido ao seu “passado de atleta”. E disse isso, vejam vocês, no mesmo dia em que o Comitê Olimpíco Internacional (COI) anunciou a decisão de adiar a Olimpíada de Tóquio.

Melhor seguir as recomendações dos especialistas do que os delírios do presidente: criança pega o vírus, sim, e precisa se proteger. O banner informativo é da Organização Pan-Americana de Saúde.

É visível que o presidente da República não se importa com a vida dos brasileiros, tampouco seu governo se preocupa com o bem-estar da população — caso contrário, não teria enviado ao Congresso uma medida provisória prevendo a possibilidade de deixar os trabalhadores por quatro meses sem salário e sem nenhuma compensação pela suspensão do contrato de trabalho. Teve comentarista da GloboNews que insistiu que o trecho polêmico, já retirado por Bolsonaro, era apenas um erro. Mas nos custa acreditar que um grupo de pessoas supostamente racionais cometeria um erro tão crasso assim, de forma inocente.

No meio desse lamaçal no qual o Brasil se enfiou, pelo menos uma ou outra coisa nós, pessoas comuns, podemos fazer. Podemos começar pressionando o Congresso a aprovar uma renda básica emergencial para as famílias mais pobres, que serão as principais prejudicadas pela pandemia. Ou assinar essa petição exigindo que a prefeitura de São Paulo forneça álcool e acolhida às mais de 24 mil pessoas em situação de rua na cidade. Podemos também colaborar com uma das várias vaquinhas que estão rolando para ajudar os mais vulneráveis afetados pela crise do coronavírus, como essa campanha de solidariedade do MTST ou essa da Uneafro.

São iniciativas que procuram fazer o que a necropolítica do governo Bolsonaro não é capaz de fazer: garantir condições de sobrevivência às pessoas. Até agora, o governo só se dignou a oferecer um vale de R$ 200 mensais, por três meses, a um número restrito de autônomos. Não é nem 1/5 do salário mínimo.

Como disse Douglas Belchior, da Uneafro, à coluna do Ricardo Kotscho no UOL:

“Não podemos esperar a ação do Estado porque a história nos mostra que ele não irá nos salvar, mas tirar nossas vidas”.

E tá errado?

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Silvana Salles

Uma jornalista que foi estudar história e ciência política. Gosta de falar sobre livros e participação política. Mestranda em ciência política na Unicamp.